MUDANÇAS DE PARADIGMAS ECLESIÁSTICOS - por Marcos Inhauser



Fico assim temeroso em dizer algumas coisas, porque confesso que estou perdido. Escrevi um texto dizendo que nós, os pastores e as igrejas, estamos sofrendo de labirintite, essa enfermidade que afeta o sistema de equilíbrio e que a gente já não está sabendo bem por onde estamos.
Estou me sentindo com labirintite no universo evangélico brasileiro. Por que? Fiquei sete anos fora do país e quando voltei, vi que a igreja ganhou as páginas dos jornais. Só que ganhou as páginas policiais! Isso para mim foi um susto.
Tentando um pouco da técnica de analisar algumas pistas para descobrir as causas, quero desenvolver um processo para tentar descobrir por onde andamos.
A primeira pista que tenho é que nós temos hoje no Brasil é a questão litúrgico-simbólica. Depois que saiu publicado meu artigo “Umbandização do Contexto Carismático”, comecei a receber telefonemas e encontrar com colegas, dizendo: “Marcos, vou te contar uma...” e lá vinha a história de práticas litúrgicas as mais estranhas. Comecei a fazer uma coleção dos exageros que andam por aí. Há uma igreja que a pastora teve uma “profecia” de que a igreja não crescia porque o púlpito da igreja tinha maldição. Não deu outra: celebrou um culto de quebra de maldição do púlpito e queimou o móvel. Um novo púlpito foi colocado no local com a devida consagração e unção do móvel com óleo.

Em outra igreja que não crescia, “descobriram que a maldição estava na pedra fundamental da igreja. Munidos de pás e enxadões, cavoucaram os alicerces da igreja, arrancaram a pedra fundamental e a jogaram fora.
Na Igreja Universal do Reino de Deus em Campinas, o pastor, num culto de quinta-feira à tarde, vendeu páginas da Bíblia do púlpito a dez reais cada. As pessoas eram orientadas a vir à frente, comprar a página da Bíblia do púlpito, a Bíblia abençoada da igreja, e comer a folha comprada para que agora tivessem a Palavra de Deus por dentro delas. Nessa mesma igreja, um dos pastores pegou a sua camisa, e com tesoura em punho, foi para o púlpito vendendo pedaços da camisa do “príncipe da igreja”. Quem comprasse tal pedaço, estava levando para casa a bênção do pastor. E, numa outra oportunidade, vendeu-se algodão abençoado. As pessoas tinham que comprar o algodão por vinte e um reais, que correspondiam aos vinte e um dias que o anjo do Senhor lutou contra o demônio da Persa. O comprador do algodão deveria ir para casa, passá-lo no cabo da vassoura, varrer a casa com ela, juntar a poeira, colocá-la em um envelope, levá-lo à igreja para que o demônio fosse expulso da casa. Fiquei sabendo de uma igreja que o pastor orientou seus membros a virem com galhos de arruda na orelha, para que o demônio não atrapalhasse o sermão. Em outra igreja, os crentes tinham que tomar um banho de sal grosso antes de entrar no templo.
A segunda pista que tenho está baseada em duas afirmações feitas por líderes de alguns destes movimentos. A Folha de São Paulo começou a pressionar a Universal do Reino de Deus, para checar se realmente estava havendo milagre. Mantiveram contato com um deputado federal ligado à Igreja, que marcou o dia em que poderiam levar jornalista, e mais quem eles quisessem para verificar in loco os milagres. Na última hora o deputado encolheu, e a expressão que ele usou foi a seguinte: “nós chegamos à conclusão de que isso não seria bom para o nosso negócio”. Isso me levou a pensar que a igreja é um negócio. Tanto é assim que hoje se tem a “holding” da fé. Igrejas envolvidas numa série de negócios que vão de confecções a material para matar barata, passando por agência de viagens, gravadoras, editoras, bandas de rock, shows evangélicos, batismos no Jordão, viagens à Terra Santa.

Esse “negócio da fé”, leva a igreja à religião de resultados. Outra pista está numa outra frase de um responsável pela implantação da igreja brasileira nos Estados Unidos. Tenho um amigo que tem um programa de rádio em Chicago e que a cada pouco me chama para entrevistar-me sobre algum assunto que diga respeito ao Brasil. Há poucos dias ele me ligou e me disse: “Nós tivemos uma entrevista com uma pessoa que é a responsável em implantar uma igreja brasileira em Chicago, e eles estão demorando para deslanchar. Eu perguntei por que estavam tendo dificuldades para arrancar e a pessoa respondeu que eles ainda não haviam descoberto o que é que o americano quer, para poder oferecer a eles”. O que ele estava dizendo? Na nossa pesquisa mercadológica da fé, não descobrimos ainda o que eles querem para chegar, oferecer, e montar o nosso negócio. Essa é a segunda pista, a pista do negócio.
A terceira pista é a pista da geração dos ex-evangélicos. Dados estatísticos que foram levantados por um seminário da Argentina e que é algo que precisaria ser feito no Brasil, levantou a quantidade de pessoas que já foram de alguma igreja e hoje são ex-evangélicos. Nós estamos com uma população (que eu arrisco uma porcentagem ao redor de 30%) dos que já tiveram certo envolvimento com alguma igreja evangélica, especialmente as de corte pentecostal e neo-pentecostal, e que hoje estão decepcionados com as igrejas. Eu digo que essa é a “geração dos decepcionados do evangelho”. Por que decepcionados? Porque foram para a igreja que lhes oferecia a cura disso, a solução daquilo, a prosperidade financeira. Puseram o seu dinheiro ali, investiram, e, afinal, viram que não era nada daquilo. Há pouco tempo, numa entrevista a um jornal, sugeri que deveria haver um “Procom da Fé”.

Estão oferecendo a cura e não sei mais o quê, e há casos que a pessoa poderia acionar o Procom da Fé porque é propaganda enganosa.
Estas três pistas me levam a pensar no que é que está por detrás disto tudo. Tem alguma coisa que não conseguimos atinar direito. Comecei dizendo de labirintite. Outra imagem que gosto de usar nesse contexto é de que me sinto como aquele capitão de barco que está em alto-mar, pega uma tempestade, o barco começa a rodar para lá e para cá. Você sabe que não vai afundar, mas não pergunte para onde ele está indo. Estou mais ou menos com esse sentimento: de perdido.
Neste contexto quero sugerir algumas pistas que talvez lancem alguma luz nesta tempestade.

Do sonho socialista para a realidade materialista e mercantilista
A primeira delas é que estamos vivendo a passagem do sonho socialista para a realidade materialista e mercantilista. Até a algum tempo nós tínhamos o sonho de uma sociedade fraterna, de uma comunidade dos iguais, em que, pelo menos a esquerda religiosa estava imbuída. Era o sonho que se fazia início de realidade nos projetos socialistas de Cuba, Nicarágua, Leste Europeu. Frases como “entre religião e revolução não há contradição” eram lemas de vida. Veio a Teologia da Libertação para dar formulação teológica ao sonho e para iluminar a prática histórica. E, como que por passe de mágica, para espanto do mundo, o sonho desmoronou com a queda do muro de Berlim. Caíram os modelos socialistas e desmontaram-se os sonhos. Quando acaba o sonho entra o comércio. Estamos nesse período entre a utopia e essa realidade do capitalismo selvagem. O sonho deu lugar à crueldade da concorrência capitalista, da sobrevivência dos melhores capitalizados (esta versão capitalista da teoria Darwiniana).

Do rural para o urbano
Quero citar uma segunda pista. É a transição do rural para o urbano que estamos vivendo. As nossas igrejas foram estruturadas para um mundo rural. Isso de ter Escola Dominical às 9:00 hs estava muito próprio para as sociedades rurais. Tinha gente que tinha sua criação de gado, tirava o leite das 5:00 às 8:00 hs, lavava as mãos almoçava, vinha para a Escola Dominical, voltava prá casa e já era hora de tirar leite outra vez. Quando terminava de tirar leite, tinha o culto às 19:00 hs. Aforma de ser igreja estava centrada nas famílias. Na igreja estavam o pai e a mãe, os filhos e filhas, os irmãos e as irmãs, os primos e as primas, os tios e as tias, o fulano que era primo da cicrana, que era irmã da beltrana. A Igreja era uma grande família. Porque trabalhavam na roça, passavam a semana toda meio sozinhos.

No final da semana, era uma festa reunir todo mundo, se encontrar e ficar na porta da igreja conversando até tarde.
Lembro-me do tempo de infância: quando acabava o culto o pessoal ficava em frente à igreja conversando horas e horas. Hoje acabou isso, porque na sociedade urbana, o sujeito encontra e tromba com gente a semana inteira. Chega o domingo e ninguém quer ver gente. Querem muito mais é se enfiar no meio do mato para não ver ninguém.
Fiquei assustado quando num domingo de manhã, fui para Londrina dar aula, e viajei pela Castelo Branco. Havia uma infinidade de faixas anunciando vendas de chácaras de 5.000 metros, de 2000 metros, etc. Ofereciam o paraíso na vida longe das grandes metrópoles. Fiquei pensando no por que tanto negócio de chácara. Cheguei à conclusão de que essa é a saída do pessoal de São Paulo, que está desesperado, que não quer mais ver gente. E por isso que, chega no domingo, não quer ficar trombando com gente outra vez. A Igreja, ao querer reunir gente aos domingos, me parece que está na contramão do processo da urbanização.

Do comunitário para o solitário
A outra coisa que me chama atenção é que nós estamos numa transição do comunitário para o solitário. Cada vez mais estamos ficando sozinhos, cada vez mais estamos nos fechando. As estâncias de promoção da comunidade, da solidariedade,
que eram os clubes, as noites de leituras de poesias, as reuniões de família, acabaram. Estamos perdendo isso e quanto mais gente estiver, quanto maior for o aglomerado urbano, menos a gente conhece de vizinhança. Nós estamos passando do comunitário para o solitário.

Do ético para o imoral
Há outra coisa que eu diria assim, que estamos passando do ético para o imoral, até no seio da igreja. A igreja protestante histórica (presbiteriana, luterana, metodista, batista) teve comportamento ético e teve ensinamento ético durante muito tempo. Quando chega o pentecostalismo, foi o advento do legalismo, da transformação da ética em regrinhas. O neo-pentecostal trouxe o pragmatismo. Um jovem me disse: “estou nessa igreja porque eu posso fazer o que quero, ninguém pega no meu pé, tudo é permitido.” E esse comportamento aético, que é um pouco característica do movimento neo-pentecostal se traduz, por exemplo, em algumas coisas que estão aí no processo de compra da Rede Record, das rádios, de certos jornais e coisa e tal. Essa história é a da transformação da religião em comércio.

Do culto para o show
Outra coisa que para mim isso me machuca e dói e está duro de engolir, é que nós estamos passando do culto para o show. Para mim é uma diferença muito grande entre um culto e um show. Porque no culto há reverência, no show há efervescência, no culto há a preocupação de glorificar a Deus, no show há a preocupação de receber as glórias por parte do pessoal que está no palco. No culto nós buscamos as luzes de Deus e no show os artistas buscam as luzes dos holofotes. No show se bate palmas, se levanta as mãos, se assobia, mas não se tem o compromisso com o próximo. No culto pode bater palmas, levantar as mãos, mas tem um compromisso com o próximo. Estamos num período de transição da congregação para a plateia. Tem muita igreja que não é igreja, fazendo culto que não é culto, e que porque não tem congregação, mas audiência, eles têm auditório, plateia.
É a religião de resultados. Os resultados que estão buscando não é a formação de congregações, é a reunião de gente que seja auditório. Uma coisa muito interessante, do comunitário para o solitário, do culto para o show, e da congregação para a plateia é que as igrejas neo-pentecostais não tem nenhuma estância que promova o trabalho solidário. Você já viu uma igreja neo-pentecostal com coral? Associação de jovens? Quando muito tem uma banda que é para show, não para culto!
Da congregação para a plateia, do culto para o show, a igreja deixou de ser igreja para ser clube. Você tem o clube dos cantadores de corinho, você tem o clube dos estudiosos da Bíblia. Isto é diferente de ser igreja. E o que eu tenho visto muito, até em certas igrejas tradicionais, são clubes. Clubes dos amigos da oratória sacra, o fã-clube do pastor Jediel, o fã-clube do bispo Dermeval. Eles não vão porque ali há um projeto de Deus, mas eles vão porque aí tem alguém que eu gosto.

Da racionalidade teológica para o misticismo mágico
Estamos saindo da racionalidade teológica para o misticismo mágico. A racionalidade perdeu o espaço para soluções irracionais. Soluções místicas: se você passar o algodão no cabo da vassoura e trouxer o lixo aqui na igreja nós expulsamos o demônio que está atrapalhando a tua vida. Como uma folha da Bíblia que vai acabar com a úlcera que você tem no seu estômago.
A reflexão teológica cedeu espaço à repetição ideológica. Esses dias alguém disse: “a igreja do Edir Macedo é um fenômeno”. Como é que conseguem ter 3.000 pastores em cinco anos? Não precisam de seminário. Ensinam umas tantas quantas frases que ficam repetindo sempre. Isso não é um pastor, isso não é um cara que sabe refletir teologicamente, esse é o sujeito que sabe repetir umas poucas frases. A reflexão teológica, e me perdoem, inclusive em certos púlpitos metodistas, batistas, luteranos e presbiterianos não é nada mais do que caixa de ressonância, de papagaios que estão falando o que aprenderam e ouviram. E algumas vezes, via televisão. Porque faltam critério, reflexão teológica, instrumental para o sujeito pensar e dizer o que está acontecendo, pegar e juntar as peças e tirar uma conclusão por si mesmo. A educação teológica deu espaço ao elogio à burrice, o neo-pentecostalismo e a religião de resultados ensinam que não se deve gastar tempo lendo livro de teologia. Isso é besteira. Leia só Bíblia. Esse elogio à burrice está na entrevista de um certo sujeito quando, na última pergunta (“alguma vez você já leu algum livro, além da Bíblia?”) respondeu: “não, não me lembro de ter lido nenhum livro além da Bíblia. Aquela coisa séria de pastores, líderes de igreja que tinham, além do conhecimento bíblico, ferramental para ler essa Bíblia com propriedade, racionalidade, inteligência, projeto hermenêutico e exegético sério acabou.

Da igreja serva à igreja que se serve
A igreja serva está cedendo lugar à igreja que se serve. A igreja antes era igreja que tinha disposição de sair, trabalhar pelos necessitados, dar de si mesmo, tinha o que oferecer. Hoje a igreja está pedindo.  

A igreja que dava é a que hoje pede.
Na religião de resultados a preocupação não é com a edificação da igreja, mas sim com o crescimento da igreja. E há uma diferença entre crescer e edificar, aquilo que na adolescência pode crescer, mas vai ter um momento que se crescer muito, a relação entre o olho e a terra fica alterada e o sujeito começa a tropeçar, trombar porque o corpo cresceu, ele já não tem noção do seu corpo. A noite ele sonha que está caindo em abismo que não tem fundo, porque ele olha no chão e está cada vez mais longe do chão. Esse tipo de reação que está acontecendo. A igreja que só se preocupa com crescer é uma igreja que sai trombando e tropeçando, porque é o crescimento exagerado. Um crescimento sólido é aquele crescimento calcificado, que o sujeito vai tomando consciência do corpo, e ele olha e diz “ainda sou eu”, daqui a pouco ele sente uma coceira e fala “mãe o que é isso aqui?”, “é barba!”.
Com tudo isso, a religião de resultados tem menos preocupação teológica e mais mercadológica; menos preocupação com a evangelização e mais com o marketing; menos preocupação com a atitude profética e mais com a questão econômica. A igreja de resultados não é e não pode ser profética, de denunciar as injustiças sociais, de trabalhar pelas necessidades, de lutar pela igualdade social, porque ao meter-se na economia de mercado e reger-se por valores mercantilistas ela faz parte desse sistema
de injustiça. E no momento em que faz parte desse esquema de injustiça, deixa de ser igreja. Mas a igreja que se rege pelos resultados, deixa de ser igreja e passa a ser empresa. E há uma diferença muito grande entre igreja e empresa!

De: Marcos Inhauser

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